Minha mãe era espírita…
Meu avô paterno, que em uma época fora sitiante bem sucedido no município de Rio Claro (SP), após abandonar a zona rural, pois os filhos ansiavam pela vida na cidade, viu-se como trabalhador não qualificado em Piracicaba (SP), aceitando o emprego de zelador na União Espírita. Recordo-me dele passando pano no chão de ladrilhos, colocando flores nos vasos, flores que ele mesmo cultivava no terreno dos fundos, dálias, cravos, rosas, longos canteiros de coloridas margaridas, um deslumbre aos meus olhos de criança… Ele detestava colhê-las, a menos que fosse para enfeitar o Centro… Era a maior dificuldade conseguir algumas para a professora da escola! Ainda sinto o delicioso cheiro da hortelã na horta viçosa, revejo as brancas toalhas das mesas mediúnicas “quarando” ao sol, estendidas sobre a grama, minha avó jogando água para que não ressecassem… E, na mesa da casa pequenina, o bule de café, os bolinhos de chuva, a rosca doce em fatias, aguardando pelos médiuns ao final da reunião… Nunca mais comi bolinhos como aqueles! Os meus nem chegam aos pés, pois falta neles o principal ingrediente, o sabor da infância! E, olhando para nós da parede, o homem sério no quadro, que eu acreditava ser meu avô em roupas de festa… Imagine! Era Kardec!
Assim minha mãe, a Dona Rosinha, dantes Filha de Maria, converteu-se ao Espiritismo… João, o imigrante italiano analfabeto, apaixonou-se pela Doutrina Espírita, mas não conseguiu convencer nenhum de seus filhos e sim sua nora! Dele herdei a paixão por ópera, pois ele adorava Caruso, escutando seus pesadíssimos discos em uma vitrola antiga de manivela, que trouxera da Itália, no navio… E o amor às flores e aos livros, que meu pai lia para ele!
Recordo-me de quando mamãe nos levava ao Centro… Limpinhos, pois limpeza sempre foi essencial para ela… Meus dois irmãos mais novos com os cabelinhos bem penteados, graças â ligeira camada de sabonete dissolvido em suas mãos e repassado nas cabeças recém-lavadas, pois gel constituía artigo de luxo. Eu, com o laçarote de engomada fita enfeitando meu cabelo curtinho, pois ela não admitia que crescesse… No final do ano, comprava um corte de tecido nas Casas Pernambucanas e uma de suas amigas, costureira, fazia um vestido melhorzinho para mim e lá ia eu para o Centro, toda orgulhosa…
União Espírita de Piracicaba! O prédio me parecia imenso e eu criança percorria seus “labirintos”, esgueirando-me pela escada que conduzia ao palco, com seu cenário de portas e janelas pintadas no grosso tecido, sustentado por resistente armação de madeira… Lindo, lindo! Por detrás, os baús, as caixas de tesouro, com as fantasias remanescentes das peças que ensaiávamos cuidadosamente, sob a orientação de pessoas cujos rostos estão um tanto esmaecidos em minha memória… Dona Jaçanã, Dona Iolanda, Nairzinha…
Cresci e aos poucos fui me afastando do Espiritismo… Casei, mudei para o Paraná, de onde me recusei a sair, encantada com a terra roxa, as árvores, a água… De vez em quando recebia algum livro espírita, enviado por minha mãe. Examinava cada um deles, mas nada me diziam… O tempo foi passando, as dificuldades existenciais aumentando, até que o Espiritismo me acenou novamente com sua bandeira libertadora. 1987… Sabe aquele ditado tão conhecido, se não vai pelo amor, vai pela dor? Através dos meandros da dor física redescobri a codificação, passando a encará-la com seriedade, estudando, trabalhando, buscando mudanças interiores. A dor, inexplicável para os muitos médicos consultados, desapareceu após quatro anos! Em seu lugar, Jesus estabeleceu morada em meu coração e vai se tornando cada dia mais dono dele. Em 2000, desliguei-me da casa espírita onde estava há 12 anos e fundei o Grupo de Estudos Espíritas Cairbar Schutel…
As coisas foram mais ou menos assim… Era para ser um grupo de interessados no estudo da doutrina… Mas apareceu a pintura mediúnica com Renoir, Monet, Van Gogh… E Tolstoi, com os contos… E pessoas sofrendo com casos de obsessão… Minha casa se tornou pequena para tanta atividade! E insegura, convenhamos! Naquela manhã, estava à porta da cozinha com a xícara de café na mão, sossegada, quando meus olhos pousaram sobre o Polo novinho, conseguido após um tempão de prestações de consórcio, e me veio à cabeça: venda o carro e faça um lugar para trabalharmos… Meu primeiro pensamento foi: nem pensar! Esperneei, mas não deu outra… Driblei o mundo espiritual (tola convicção) e vendi o carro mais simples de minha filha, repassando-lhe o meu… No final da construção, após muito apuro financeiro, conclui que deveria ter vendido o Polo!
Era para ser uma edícula, mas acabou sendo uma casinha que mais parece de boneca, em meio a um jardim lindo, com barulho de fonte e ninfeias, pedido sutil de Monet no final da obra, tipo assim: a irmã poderia arrumar umas ninfeias e colocar em uma bacia no jardim… Hum! Bacia… O dinheiro estava curtíssimo… Fiquei com vontade de perguntar: de plástico ou alumínio, Monet? Mas o respeito fez-me calar… Mandamos fazer um tanque com chafariz e saímos atrás das tais plantas… Estão lá até hoje, humilde recordação dos esplêndidos jardins de Giverny, e suas flores abrem ao sol… Tudo pequeno e aconchegante… Temos peixinhos, abelhas jataí, gatos, pássaros que vêm se banhar na fonte… E flores, muitas flores, jamais colhidas a não ser para enfeitar o Centrinho, que é como nos chamam… Viu, vovô? E há hortelã perfumosa, bancos acolhedores… E toalhas alvas nas mesas, lavadas na máquina, vovó! Na parede, um Kardec igualzinho ao da salinha de meus avós, mas colorido, ladeado por Jesus e Cairbar…
Quem sou eu?
Estou Cirineia… Espírito encarnado em Piracicaba (SP). Nem sonhem que vou colocar o ano, pois sou mulher… Resido em Porecatu, uma cidade do Paraná com cerca de 14.000 habitantes, desde 1973. Meu retorno às origens espíritas ocorreu em 1987. Desde o ano de 2000, minha existência mudou completamente, com a presença de pintores mediúnicos e a psicografia dos livros Mulheres Fascinantes, Homens Notáveis, A Arte de Recomeçar e Retratos de Nazaré, todos de Léon Tolstoi. Há dois ou três meses a Editora Boa Nova lançou Camélias de Luz, ditado pelo espírito Antonio Frederico, que conta a história de uma das mentoras de nossa Casa… Cândida!
Sou médium… Relutei muito em aceitar a faculdade, pois isto implicaria o abandono de ilusões, renúncia, trabalho incessante, assunção de compromissos, luta contra o egoísmo… Hoje, não concebo a existência sem a presença dos amigos espirituais… Seria destituída de encantos! E dos inimigos espirituais, pois são eles que sinalizam a necessidade de mudança, na medida em que nos acessam através dos pontos fracos…
